sexta-feira, novembro 23, 2007

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e o Acesso a Medicamentos Essenciais

Ano 2, No.5, Novembro de 2007
André Medici
O acesso a medicamentos essenciais é um dos principais fatores que garante a efetividade dos serviços de saúde. Medicamentos são, para os processos de prevenção, tratamento e rehabilitação de enfermidades, tão importantes como as vacinas são para os processos de imunização. Uma consulta médica raramente alcança o resultado positivo esperado quando o paciente não tem acesso aos medicamentos prescritos.

Dada sua relevância, a universalização do acesso a medicamentos essenciais foi considerada como uma das metas associadas aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)[1]. A Meta 17 dos ODM compromete os governos dos países desenvolvidos, entre 1990 e 2015, a “proporcionar, aos países em desenvolvimento, em cooperação com as empresas farmacêuticas, acesso aos medicamentos essenciais a preços razoáveis”.

Não há como negar a contribuição que reuniões como essa tem trazido à história recente da humanidade. Em geral, elas funcionam como algumas leis promulgadas pelos congressos nacionais. Se definem compromissos institucionais que, muitas vêzes, não tem um alcance viável nos prazos estabelecidos, mas que funcionam como mecanismos de pressão para o progresso social[2]. Mas para que estas reuniões ganhem credibilidade junto a população, se deveria, ou postular objetivos e metas mais realistas, ou aumentar a capacidade de fazer cumprir os compromissos estabelecidos.

A primeira dificuldade em cumprir a meta 17 dos ODM está em encontrar uma definição operacional sobre o que são medicamentos essenciais. A segunda dificuldade, uma vez resolvida a primeira, consiste em definir os mecanismos de cooperação entre empresas farmacêuticas e govêrnos para que se encontre algum nível de compromisso com a obtenção do que se chama de “preços razoáveis”. A terceira dificuldade consiste em mobilizar os recursos humanos, financeiros e logísticos, ao nivel de cada país, para facilitar o acesso aos medicamentos essenciais. Tal mobilização não depende das indústrias farmacêuticas, mas sim dos governos nacionais que, na maioria dos países em desenvolvimento, não encontraram até hoje mecanismos razoáveis de regulação e gestão que combinem a extensão de cobertura dos serviços de saúde com o acesso regular a medicamentos essenciais, especialmente nas localidades onde vivem os mais pobres e excluídos.

O conceito de medicamentos essenciais é, ao mesmo tempo, simples e complexo. Simples pela sua definição. Complexo pela dificuldade de aplicação ao contexto específico de cada país ou região. Vejamos o que diz a definição dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS): “Medicamentos essenciais são aqueles que satisfazem as necessidades prioritárias de saúde da população. Eles são selecionados de acordo com sua relevância em saúde pública, segundo evidências de sua eficácia e segurança e em conformidade com a melhor relação custo-efetividade. Medicamentos essenciais devem estar sempre disponíveis para atender às necessidades dos sistemas de saúde, nas proporções e dosagens adequadas, com qualidade assegurada e informação adequada, e a um preço que os indivíduos e as comunidades possam pagar[3].

Sabemos que as necessidades de saúde não são as mesmas para cada tipo de nação ou região. Portanto, os medicamentos essenciais que deveriam estar disponíveis para os países como Rwanda não são os mesmos que deveriam estar disponíveis na Finlândia. Necessidades de saúde estão associadas, basicamente ao ranking de patologias que formam a carga de enfermidade, tanto associada à mortalidade como a morbidade, atribuível a cada país.

É por este motivo que a OMS elabora, desde 1977, uma lista de medicamentos essenciais, a qual é constantemente atualizada através de consultas aos países membros. A primeira lista continha cerca de 200 medicamentos e a atualmente vigente conta com cerca de 310. No entanto, pouco tem avançado, em termos práticos, a possibilidade de alcançar a disponibilidade e acesso a estes medicamentos na maioria dos países.

Entre os ODM, podemos encontrar cinco metas específicas associadas ao setor saúde: a meta 2 (associada à redução da fome e da desnutrição); a meta 5 (associada à redução da mortalidade de crianças menores de 5 anos); a meta 6 (associada à redução da mortalidade materna); a meta 7 (associada à redução da incidência de HIV-AIDS) e a meta 8 (associada a redução de malária e outras doenças transmissíveis). Ao nivel global, se tem defendido que estas metas deveriam ser àquelas para as quais se deveria priorizar a produção de medicamentos essenciais. Esse tem sido o entendimento que se tem levado a cabo nos acordos comerciais associados à produção de medicamentos, onde as empresas farmacêuticas, organismos internacionais e mega-entidades filantrópicas privadas como a Fundação GATES tem buscado meios para tornar acessível o acesso aos medicamentos essenciais associados ao alcance destas metas.

Se observarmos quanto os ODM representam da carga de doença (medida em anos de vida saudáveis – AVISA - perdidos) de cada Região Mundial vamos descobrir que existe uma grande discrepância entre as metas do milênio e as prioridades de saúde de cada Região. Enquanto as metas de saúde associadas aos ODM representam mais de 95% da carga de doença (AVISA perdidos) da África Sub-sahariana, eles representam somente 6% da carga de doença dos países de industrialização avançada, 11% da do Leste Europeu e Ásia Central e 17% nos países da América Latina e Caribe, respectivamente.

Portanto, os medicamentos essenciais para a África Sub-Sahariana, onde a mortalidade infantil, a desnutrição e as doenças infecciosas respondem pelo grande déficit de AVISA, não deveriam ser os mesmos para cobrir as necessidades da América Latina e Caribe, onde a maioria dos AVISA perdidos se associa a doenças crônicas e a causas externas, e onde os mais pobres morrem precocemente pela falta de acesso aos medicamentos caros para o tratamento de fatores de risco como pressão arterial, colesterol elevado ou diabetes.
Uma versão completa deste artigo, com dados e evidências sobre os medicamentos essenciais na Região, pode ser encontrada na Revista Saúde em Debate, No. 72, junho-abril de 2006, Ed. CEBES. Abaixo pode ser encontrado o link da Revista
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[1] Os ODM foram estabelecidos através de acordos entre os países em diversas reuniões internacionais, realizadas entre 1996 e 2002. A Declaração do Milênio das Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em setembro de 2000, consensuada por 189 países, pactuou um conjunto de 8 objetivos, desdobrados em 18 metas que seriam essenciais para a redução das disparidades globais e aceleração do desenvolvimento dos países mais pobres e deveriam ser atingidas até o ano 2015. Estas metas foram rediscutidas na Conferencia de Monterrey, em março de 2002, onde se consensuou a responsabilidade dos países ricos em mobilizar recursos para o desenvolvimento e na Conferência de Johannesburg, realizada em setembro de 2002, onde se enfatizou o compromisso global com a redução da pobreza.

[2] Um interessante exemplo foi dado pela Organização Panamericana de Saúde que, nos anos 80, definiu como lema para a América Latina, a meta “Saúde para todos no ano 2000”. Ao participar de uma reunião nesta mesma entidade no ano 2000, fui testemunha ocular de um interessante discurso, quando, ao deparar-se com a realidade dos indicadores de saúde regionais, as autoridades presentes redefiniram a meta como “Saúde para todos no prazo mais curto possível”.
[3] WHO (2002), “The Selection and Use of Essential Medicines”. Report of the WHO Expert Committee, including the 12th Model List of Essential Medicines. WHO Technical Report Series No.914.