sábado, junho 19, 2010

Da Atenção Primária às Redes de Saúde: Novos Caminhos para a Regionalização do SUS - FINAL

Ano 5, No. 17, Junho 2010


André Cezar Medici




Na última postagem deste blog fizemos uma pesquisa simples para perguntar aos nossos leitores a opinião sobre redes de saúde. Ainda que poucos leitores tenham respondido, os resultados mostram que 85% acham que redes de saúde poderão aumentar o acesso, a eficiência e a equidade do SUS; 4% acham que as redes não teriam esse papel, 4% não sabem e 7% acham que as redes talvez possam ter um papel positivo na melhoria do acesso, eficiência e equidade do SUS. Neste sentido, valeria a pena desenvolver experiências concretas de rede no país ou avaliar as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde que já avançam neste processo.

A presente postagem completa a discussão sobre redes de saúde no Brasil, fazendo uma proposta para criar um novo entorno operativo para um SUS regionalizado e revigorado. Será discutido o conceito de rede de saúde e o Projeto QUALISUS rede, recém aprovado pelo Banco Mundial, como um dos pilares para a construção de pilotos que irão desenvolver diferentes modelos de rede a serem implantados no Brasil. Se espera, também, que nos próximos anos o Ministério da Saúde tenha os quadros técnicos necessários para acompanhar as experiências estaduais e municipais na criação de redes de saúde.

Como visto anteriormente, a discussão sobre redes de saúde aparece em vários momentos na discussão sobre regionalização. Ela está implicitamente presente na discussão de hierarquização de Alma Ata, nas propostas de SILOS e Distritos Sanitários, na proposta operativa dos CIMS e começa a se explicitar como preocupação gerencial no contexto da NOAS.

Entre a formulação dos Pactos em 2006 e a presente data, novos temas começam a surgir no contexto do Ministério da Saúde que reaproximaram a discussão relacionada a Redes de Saúde: a) A criação do Departamento de Articulação de Redes Assistenciais (DARA) da Secretaria de Ações de Saúde (SAS) do Ministério da Saúde (MS); b) A contratação, com o Banco Mundial, do Projeto QUALISUS-REDE pelo Ministério e c) A organização de redes de saúde como política de alguns Estados, como Minas Gerais e São Paulo.

O Conceito de Redes de Saúde

O Ministério da Saúde, através do DARA, define Redes de atenção à saúde como arranjos organizativos de unidades funcionais e/ou pontos de atenção de diferentes densidades tecnológicas, que, integrados por meio de sistemas logísticos, de apoio diagnóstico e terapêutico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado. A porta de entrada e base para a organização do sistema é a estrutura de atenção primária da saúde.

Sob a égide deste novo conceito, o tema da regionalização pode passar a ser visto dentro do marco do conceito de Rede. Desta forma, Regionalização é o processo de constituição de Regiões de Saúde, nas quais se arranjam redes regionalizadas de atenção à saúde, visando garantir a universalidade do acesso, a eqüidade, a integralidade e a resolubilidade das ações e serviços de saúde.

A necessidade de orientar o atual processo de regionalização do SUS através da gestão de redes busca resolver várias deficiencias hoje encontradas no perfil de organização dos serviços de saúde no Brasil, tais como:

 Planejamento fragmentado e verticalizado das ações de saúde, focado num modelo de financiamento com poucos incentivos para uma gestão eficiente;

 Ferramentas e processos de gestão orientados por incentivos a oferta e não como resposta a demanda dos usuários do sistema;

 Mecanismos de acreditação de qualidade inexistentes ou incipientes. Para exemplificar, dentre a totalidade de mais de 7000 hospitais brasileiros menos de 200 são acreditados pelos estándares de qualidade da ONA ou da CBA;

 Inexistência ou pouca disseminação no uso de modelos de avaliação e monitoramento baseados em resultados. Ainda que o Brasil tenha avançado enormemente no uso de dados e produção de informações de saúde, a pactuação de metas pouco se mede ou se avalia por resultados assistenciais;

 Estruturação incipiente de redes de atenção à saúde, especialmente no tocante aos mecanismos regulação do acesso e contratualização – Existe a necessidade de aumentar o escopo de mecanismos de autonomia de gestão das redes e unidades que permitam maior flexibilidade, ao mesmo tempo que garantam melhores resultados assistenciais a custos razoáveis;

 Escassez de recursos humanos tecnicamente preparados para a gestão eficiênte dos serviços e estratégias de capacitação de recursos humanos customizadas ao nivel de cada espaçõ regional;

 Incorporação tecnológica acrítica e avaliação tecnológica incipiente, levando a gastos desnecessários em tecnologias caras e insuficiência de gastos em procedimentos e diagnósticos efetivos de media complexidade;

Para resolver estes problemas se definem áreas onde atuaram as redes, sua capacidade de gerir problemas diferenciados no entorno social aonde se situam, seus mecanismos de formulação de políticas, financiamento, resolubilidade e legitimação social e suas linhas técnicas de intervenção no campo da saúde, em todas as suas dimensões. A criação de redes de saúde, na visão do Ministério da Saúde, traz uma série de potencialidades, onde cabe destacar:

 O acesso aos serviços de saúde, de forma hierarquizada, em todos os níveis de complexidade para uma população com base territorial definida;

 Economias de escala na produção de serviços especializados, evitando disperdícios e utilizando tecnologia apropiada e resolutiva ao menor custo possível;

 Soluções customizadas para as características sociais, epidemiológicas, demográficas y geográficas de cada Região de Saúde;

 A eliminação de “vazios assistenciais” ou “excessos de oferta” ao nivel regional, contribuindo para a equidade no acesso e qualidade dos serviços;

 A grantia da qualidade assistencial e da eficiência da gestão como eixos condutores de seu processo de administração das redes e;

 Acreditação das unidades, processos de entrega de serviços e gestão clínica, como forma de assegurar a seguridade dos pacientes e a garantia de qualidade dos serviços.

Considerados estas potencialidades, no contexto das redes de saúde, novos conceitos começam a surgir: os de territórios de saúde, de governança de redes e de gestão regional compartilhada de redes e de linhas de cuidado. Desta forma:

 Territórios sanitários, são áreas geográficas que comportam uma população – com necessidades e características (epidemiológicas e sociais) próprias – e os recursos de saúde necessários para atendê-la. A área geográfica é definida de acordo com cada realidade e pode ser constituída por vários bairros de um município ou por vários municípios de uma região. Uma vez conformados, estes poderiam se configurar como Territórios Integrados de Atenção a Saúde (TEIAS) que seriam elementos de transição para a conformação de uma Rede Integrada de Atenção a Saúde (REIAS);

 A governança das redes de atenção à saúde é entendida como a capacidade de intervenção na realidade de saúde que envolve diferentes atores, instituições, mecanismos e procedimentos para a gestão regional compartilhada da referida rede.

 Gestão regional compartilhada é o processo decisório para a formulação de políticas; a pactuação de recursos, monitoramento e avaliação de desempenho da rede, incluindo a definição de instrumentos e mecanismos de participação e controle social.

 Linhas de Cuidado em saúde são um conjunto de práticas e intervenções voltadas à promoção, preservação ou recuperação da saúde, englobando desde as iniciativas singulares de auto-cuidado (desenvolvidas pelos próprios indivíduos, com o objetivo de promover, preservar ou recuperar a saúde) até as atividades ofertadas de forma organizada pelas redes de saúde.

Embora não existam dados sistematizados sobre demandas reprimidas e vazios assistenciais, é fato conhecido a insuficiência de oferta nas áreas de consultas especializadas e de diagnose, especialmente nas áreas mais pobres do país. Tal situação faz com que a assistência de média complexidade seja comumente considerada, tanto por gestores, quanto por usuários, como um ponto de estrangulamento do sistema.

As consequências são visíveis, na medida em que se acumulam filas de espera em hospitais; atrasos na intervenção médica; agravamentos em indivíduos com patologias crônicas; defasagens de cobertura; e possíveis desperdícios (por um lado) e ociosidades (por outro) na utilização dos recursos disponíveis.

Os serviços de atendimento às urgências necessita não só ser ampliados, mas fundamentalmente qualificados por meio da reestruturação dos processos de trabalho e do monitoramento e avaliação dos resultados esperados (1). E nessa perspectiva que o Ministério da Saúde tem apoiado Estados como o Rio de Janeiro, na implantação de programas, até agora exitosos, como o das Unidades de Pronto Atendimento (UPA 24 horas) e Serviços de Assistência Médica de Urgência, que parecem ser um dos caminhos para integrar a média complexidade no processo de conformação das redes de saúde.

O Projeto QUALISUS-REDE

As estratégias para o investimento em conformação das redes de saúde, que atendam aos vazios assistenciais, especialmente nos temas de média e alta complexidade, se consolidam atualmente sob o Programa Mais Saúde que representa investimentos estratégicos do Ministério da Saúde na implantação do Pacto pela Saúde e suas estratégias constitutivas, onde se destaca as Redes Regionalizadas e Integradas de Saúde. Como parte deste processo, o Ministério da Saúde solicitou ao Banco Mundial recursos para a implantação de programas de apoio ao investimento e conformação de redes, em carater piloto, nos Estados. Estes recursos se consubstanciam no Projeto QUALISUS-REDE, o qual será descrito em sequência (2).

Os principais objetivos do Projeto Qualisus-Rede são:

 Organizar, no âmbito do SUS, redes de atenção à saúde que considerem o protagonismo da atenção primária no seu ordenamento;

 Instituir mecanismos de gestão dessas redes, com vistas a aumentar a eficiência e melhorar os resultados do SUS;

 Produzir, sistematizar e difundir conhecimentos voltados: à melhoria da qualidade da atenção e da gestão em saúde; ao desenvolvimento de metodologias e processos de avaliação e gestão da qualidade; e à gestão da inovação tecnológica em saúde;

 Priorizar os investimentos na atenção especializada, (ambulatorial e hospitalar); na atenção de urgência e emergência; e no aprimoramento dos sistemas logísticos de suporte à rede;

 Fortalecer a regionalização, a contratualização, a regulação do acesso, a responsabilização dos gestores e a participação social;

 Aumentar a qualidade do cuidado em saúde, incentivando a definição e implantação de protocolos clínicos, linhas de cuidado e processos de capacitação profissional.

Para alcançar estes objetivos, o Projeto Qualisus-Rede deverá se basear nas seguintes estratégias:

 Apoiar o desenvolvimento de redes de atenção à saúde em regiões metropolitanas e “regiões-tipo” definidas pelo MS. O projeto prevê implantar, no prazo de 4 anos, pelo menos 15 Redes Regionais de Saúde, das quais dois terços seriam organizadas nos espaços metropolitanos definidos por cada Estado e cinco redes seriam organizadas segundo áreas sócio-geográficas peculiares como a Amazônia Ribeirinha; as regiões do agreste e sertão nordestino, etc.

 Estimular o desenvolvimento de linhas de cuidado pré-definidas como um dos elementos de qualificação do cuidado em saúde. Já foram definidas pelo governo federal 5 linhas de cuidado com protocolos definidos, mas o objetivo do Programa é ampliar ainda mais este escopo de forma a privilegiar o que pode ser utilizado em benefício de aumentar a resolutividade;

 Investir prioritariamente na atenção especializada (ambulatorial e hospitalar) de média complexidade e de urgência e emergência, na medida em que os dados revelam que essa é a principal deficiência do Sistema;

 Integrar processos de investimento com iniciativas de desenvolvimento de recursos humanos e de implementação de novos processos e tecnologias de informação e gestão.

 Fortalecer os mecanismos e instrumentos de gestão governamental e organizacional em apoio à estruturação das redes de atenção à saúde;

 Incentivar o uso de novos processos de gestão, novas modalidades de pagamento pelos serviços e parcerias público-privadas na entrega dos serviços.

Considerações finais

Em que pesem os avanços no processo de regionalização da saúde no Brasil, ele atualmente vive seu momento mais crítico, onde se passa progressivamente de um discurso construtivista para a implantação de uma prática, onde as experiências recém começam. Estados como Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e outros avançam progressivamente na construção de suas redes e implantam paulatinamente uma métrica de gestão por resultados.

No Estado de Minas Gerais, por exempo, após seis anos do Governo Aécio Neves, já se apresentam alguns resultados positivos do processo de implantação de Redes Temáticas de Saúde. Destaca-se nesse processo, a Rede de Urgência e Emergência, onde a gestão da atenção médica começa a se realizar a partir da aplicação de uma classificação de risco. Outras, como a Rede Viva-Vida cuida da atenção da saúde da mulher e da criança, com resultados notáveis, como a redução em 34% da mortalidade neonatal precoce desde a implantação do projeto no ano 2000. Também se destaca a forte redução da mortalidade materna, que caiu de 38 para 26 mortes por 100 mil nascidos vivos entre 2002 e 2007 (3). Um exemplo no Estado de Rede Integrada é a implantada no Município de Janaúba, a qual tem servido de referência para muitos como experiência exitosa.

O estado de São Paulo conta hoje com 64 regiões de saúde. Cada uma delas possui um Colegiado de Gestores, fruto do Pacto de Gestão pela Saúde, que busca um acesso mais qualificado e eficaz aos serviços de saúde para a população do estado. Dado o processo insipiente de formação de redes em cada uma destas Regiões, se pode dizer que dos 645 municípios de São Paulo, 475 assumiram algum tipo de serviço que estava sob gestão estadual e 77 hospitais, também sob gestão estadual, passaram para municípios (4). Dentre os pontos positivos dessa nova forma de gestão de saúde, se destaca que toda a condução do processo é feita de forma bipartite (municípios e estado), além da integração dos processos de planejamento, programação e regulação. Entretanto, desafios existem e estão sendo enfrentados pelos gestores, com maior ênfase na qualificação da atenção básica, no desenvolvimento de redes de atenção integral à saúde, com foco na escala/qualidade, e na qualificação das regiões de saúde, com apoio das universidades, o que acontecerá até o ano de 2010.

No Rio de Janeiro se destaca, até o presente, a implantação de UPAs 24 horas e dos SAMU e a forte redução da demanda por atenção de urgência nos hospitais, com um grande aumento da satisfação dos usuários, especialmente na Região Metropolitana.

Independentemente de todos esses avanços, muito ainda há por construir e o Projeto QUALISUS rede poderá representar uma inestimável ajuda, através da geração de modelos alternativos de gestão de redes e da implantação de uma cultura de monitoramento, avaliação e gestão por resultados no âmbito do SUS.

Como desafio para o futuro, vale a pena pensar em outros aspectos que merecem destaque. Primeiramente, que, uma vez que saúde é multi-determinada, redes de saúde devem ter sinergias com outros setores sociais, como educação, cultura, meio ambiente, trabalho e lazer, só para citar alguns. Um exemplo claro quanto a este ponto são os programas de desenvolvimento precoce das crianças (early child development), onde políticas integradas de saúde e nutrição pré-escolar com estímulos a aprendizagem cognitiva são fundamentais na geração de efeitos positivos na educação e melhorias salariais para futuras gerações (5).

Em segundo lugar, redes de saúde devem ter uma postura ativa em relação ao usuário, compartindo a informação e dando-lhe responsabilidades para cuidar de sua própria saúde. No caso do SUS, vale pena pensar nos incentivos que poderiam ser dados para que os indivíduos se interessem voluntariamente por promoção, prevenção e vida saudável como ocorre com a experiência norte americana da Kaiser Permanente. Redes de Saúde devem qualificar o usuário e compartilhar a informação assistencial com eles, com o objetivo não somente de aprimorar a qualidade assistencial mas principlamente de melhorar a qualidade de vida para todos.

Notas

(1) Rollo, A.A. (2008), Entrevista dada a Revista Observa Saúde, Ed. FUNDAP, São Paulo (SP) http://observasaude.fundap.sp.gov.br/pacto/Redesatencao/Acervo/Rede%20C%C3%A2ncer_entrevista.pdf.

(2) O Projeto QUALISUS rede corresponde a um investimento de cerca de US$600 milhões, dos quais US$235 são um empréstimo do Banco Mundial ao Ministério da Saúde, para a montagem de 15 redes de saúde no Brasil, com distintos modelos metropolitanos e de regiões com outros contornos geográficos.

(3) Souza Marquez, A.G., Mendes, E.V., Silva, J.A e Pestana da Silva, M.V.C, (organizadores) (2009) “O Choque de Gestão na Saúde de Minas Gerais, Ed. Governo do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG).

(4) Stucchi, M.L.R. (2007), “Consórcios Intermunicipais de Saúde no Estado de São Paulo”, Secretaria de Estado da Saúde, São Paulo (SP).

(5) Behrman, J., (2008) “Early Life Nutrition and Subsequent Education, Health, Wages and Intergenerational Effects”, Ed. Commission on Growth and Development, Working Paper No. 33, Washington (DC)

terça-feira, junho 08, 2010

Da Atenção Primária às Redes de Saúde: Novos Caminhos para a Regionalização do SUS - Parte III

Ano 5, No. 16, Junho 2010


André Medici



A Regionalização do SUS num Período de Transição

Como visto na postagem anterior, a expansão dos Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIMS) ocorreu rapidamente na segunda metade dos anos noventa, especialmente nos municípios de menor porte. Através deles, estes municípios puderam oferecer a sua população, acesso a consultas especializadas e exames com uma tecnologia mais avançada e até mesmo com uma maior complexidade e/ou resolutividade mais apurada. No entanto, o crescimento dos CIMS praticamente estancou entre 2001 e 2005. Que fatores poderiam explicar esta estagnação? Algumas hipóteses poderiam ser aventadas a respeito.

De acordo com estudo recente de Teixeira, McDoweel & Bugarin (1) a sustentabilidade financeira dos CIMS depende, fundamentalmente, de dois tipos de incentivos: mecanismos de punição financeira introduzidos aos participantes que saiam do consórcio e ganhos tecnológicos incorporados aos serviços de média e alta complexidade para as populações residentes em municípios que não dispõe destas facilidades.

A legislação dos SUS estimula a formação de consórcios, através de regras de financiamento que permitem agregar recursos de diversos municípios na gestão de um fundo comum de saúde. Mas esta legislação não prevê mecanismos de punição, caso um município deseje sair do consórcio, como é o caso de negar o acesso de sua população a um serviço que se situa em outro município também pertencente ao consórcio.

Até o início da presente década, os incentivos financeiros à formação de consórcios – especialmente para o financiamento de serviços alta e média complexidade – estavam postos, e tanto os municipios que ofertavam como os que demandavam estes serviços saiam satisfeitos em participar do consórcio sem acumular perdas ou no acesso ou na restituição financeira. As regras ficaram ainda melhor definidas com a aprovação, por parte do Ministério da Saúde da Norma Operacional de Assistência a Saúde (NOAS-SUS), em janeiro de 2001.

Os incentivos gerados pela NOAS(2)

A NOAS-SUS definia a regionalização como a principal estratégia para estabelecer um conjunto de redes integradas de saúde no páis. Para ter acesso aos recursos do SUS, as Secretarias Estaduais de Saúde passariam a elaborar Planos Diretores de Regionalização, definindo Regiões Integradas de Saúde. Com base neste plano, à cada Região corresponderia recursos relacionados a um Plano de Atenção Básica Ampliada (PABA), que incluia procedimentos de média e alta complexidade, reduzindo os recursos repassados sob a forma de ressarcimento e aumentando aqueles transferidos sob critérios per-capita. Cada Estado seria dividido em Regiões de Saúde que deveriam prover, pelo menos, serviços de atenção básica e de média complexidade para que se qualificassem às transferências do PABA.

Os serviços de alta complexidade seriam definidos e ou ofertados de acordo com arranjos especiais entre os Estados e o nível federal de Governo e seriam financiados por meio de um Fundo para Ações Estaratégicas de Compensação (FAEC). Os hospitais públicos deixam de ser financidos através da produção de serviços e passam a depender das metas estabelecidas em comum acordo entre Estados e Municipios.

Por outro lado, a NOAS aumentava o poder dos Estados em regular a autonomia financeira dos Municípios em matéria de gasto em saúde, na medida em que vinculava tetos financeiros para as transferências de recursos associados ao cumprimento de metas por resultados. Também redefinia os critérios de habilitação de estados e municípios para o recebimento automático de recursos fundo a fundo do SUS. Assim, ela passou a ser vista pelas Secretarias Municipais de Saúde como um retrocesso no processo de municipalização da saúde.

Com vistas a obter apoio dos Municípios ao processo, a NOAS-01-2001 foi revogada e substituida pela NOAS-01-2002, de fevereiro de 2002, que busca construir alternativas para os impasses com os secretarios municipais de saúde, surgidos com a discussão da NOAS-01-2001 e melhor especificar tarefas e atividades sob responsabilidade dos três niveis de Governo, com ênfase no papel dos municípios. São definidas responsabilidades especificas e ações estratégicas para a atenção básica. São introduzidas melhorias no sistema de informações ambulatoriais, um elenco mínimo de procedimentos de média complexidade e internações hospitalares a ser ofertados pelos municípios-sede de módulos assistenciais, estabelecidos os termos de compromisso entre o município-sede e os demais municípios do polo (praticamente regulando a natureza dos CMIS existentes e futuros) e definidos os critérios e processos detalhados para a habilitação de Estados e Municípios.

As NOAS foram as primeiras normativas que avançam concretamente no processo de regionalização ao estabelecer estratégias de planejamento para a constituição de redes regionais de saúde com o objetivo de “promover maior eqüidade na alocação de recursos e no acesso da população às ações e serviços de saúde”. Introduziram a concepção dos módulos assistenciais, microrregiões, macrorregiões e regiões de saúde expressas, expressas nos Planos Diretores de Regionalização (PDR).

No entanto, com o final do Governo Fernando Henrique Cardoso e o início da Presidencia de Luiz Ignácio Lula da Silva, a implantação da NOAS-01 ficou no limbo. A visão do Ministério da Saúde durante o Governo Lula, ao ser mais favorável a autonomia dos municípios, levou o tema da regionalização a ser rediscutido.

Assim, entre 2003 e 2006 começa a se gestar uma nova concepção que, embora resgate alguns aspectos da NOAS, prevê um processo mais participativo, sob a condução dos municípios, na definição da Regionalização em Saúde no Brasil.

Os Pactos pela Saúde

A orientação da gestão do SUS, sob a égide do Governo Lula, retomou o apoio ao processo de municipalização, considerando como princípios (a) o respeito à cada esfera de governo como gestora do SUS, (b) a qualificação dos municípios, segundo o porte e suas características, na operacionalização de seu papel como gestor do SUS e (c) a necessidade de articular a colaboração das três esferas de governo: os Municípios entre si, dos Estados com os Municípios e entre si e da União com todos, com ênfase nos resultados da saúde(3).

Para operacionalizar estes princípios, se iniciou um amplo processo de consultas populares – conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde; comissões bi-partites (em cada estado e tri-partite) e com forte participação de entidades representativas dos Secretarios Municipais (CONASEMS) e Estaduais (CONASS) de Saúde que se extendeu de 2003 a 2006.

A principal conclusão destas consultas foi a de que cada região tem suas pecularidades e não caberia ao nivel central de governo – no caso o Ministério da Saúde – definir como se configurariam as responsabilidades pela gestão do SUS em seus diferentes níveis de complexidade, sem um estudo caso a caso.

Como produto deste processo, ao invés de processos técnicos de definição de responsabilidades entre esferas de Governo, foram definidas as seguintes premissas: (a) os municípios se responsabilizariam sempre e integralmente pela atenção básica; (b) as referencias para ações de alta e média responsabilidade seriam negociadas e pactuadas em articulações entre Municípios, Estados e até mesmo ao Nível Federal, expressando em cada Região uma responsabilidade consensuada e compartilhada pelas três esferas de Governo e considerando, como pano de fundo, a qualificação do gestor municipal; (c) o monitoramento e acompanhamento de problemas fundamentais de saúde (como mortalidade infantil e materna, por exemplo) como co-responsabilidade de entidades federadas (compartilhados técnica e financeiramente pelas três esferas de Governo). Para tal se elaboraria um elenco de indicadores de resultado em saúde que acompanhariam estes programas.

Pontos importantes deste debate foram a Carta de Natal, assinada no encontro nacional dos secretarios municipais de saúde, em 2004, onde se expressava a necessidade de construir um novo pacto para a gestão do SUS, substituindo a normatização excessiva pela adesão de compromissos por resultado e superando o repasse fragmentado dos recursos e estimulando a solidariedade entre as três esferas de governo no financiamento, com ênfase numa maior co-participação dos Estados no financiamento das ações de saúde, incluindo aquelas desenvolvidas no âmbito municipal.

Com base neste movimento, se formulou um grupo de trabalho, composto pelo CONASS, CONASEMS e Ministério da Saúde que formulou as Diretrizes Operacionais do Pacto pela Saúde e Consolidação do SUS . Os Pactos substituem vários controles que antes feriam a autonomia dos municípios. Por exemplo: substitui a habilitação dos municípios (a ser concedida de acordo com as NOB-NOAS como permissão do Ministério da Saúde) por um termo de compromisso, que é uma relação contratual onde cada esfera de governo se compromete com sua parte a melhorar a gestão municipal; substitui a fragmentação das transferências financeiras por transferências em bloco (block grants) estruturadas em cinco categorias: (i) Atençao Básica, (ii) Atenção de Média e Alta Complexidade e Hospitalar; (iii) Vigilância em Saúde; (iv) Assistência Farmacêutica e (v) Gestão do SUS.

Pelo menos três pactos foram assinados até o momento: Pacto pela Vida (incluindo prioridades como saúde do idoso, cancer de colo uterino e de mama, mortalidade infantil e materna, doenças emergentes e endemias e promoção da saúde); Pacto em Defesa do SUS, orientado pela defesa dos direitos dos pacientes e comunicação social, regulamentar a Emenda Constitucional 29 (EC-29), garantir o aumento dos recursos financeiros do SUS e; Pacto de Gestão do SUS (definindo responsabilidades de cada esfera de governo, estabelecimento de diretrizes para a gestão do SUS, processos de participação e controle social, planejamento e programação pactuada integrada e gestão do trabalho e educação na saúde).

A Regionalização da Saúde no Contexto dos Pactos

Com a estrutura dos Pactos, o Ministério da Saúde passa a ser um ator mais coadjuvante e menos central na definição dos arranjos necessários ao processo de regionalização. Mas mesmo assim, dado seu carater central, as consultas realizadas com entidades como o CONASEMS e o CONASS, tem permitido ao Ministério avançar em algumas linhas gerais de como se orientará o processo futuro de regionalização. Deixando, portanto de se orientar pela oferta, o Ministério passa agora a formular uma proposta mais orientada à demanda dos Estados e Municípios, de seus gestores e de suas comunidades.

A proposta de qualificar a regionalização da saúde feita pelo Ministério, a qual surge das discussões travadas na proposta de Pactos de Saúde, é uma proposta solidária e cooperativa. Conforme expressa o Ministério, “seu avanço depende, porém, da construção de desenhos regionais que respeitem as realidades locais, estabelecendo os Colegiados de Gestão Regional (CGR) como espaços ativos de co-gestão e estimulando estados e municípios a potencializar seus
trabalhos, em uma dinâmica de regionalização viva” (4).

Com este novo enfoque (5), a regionalização objetiva garantir o direito à saúde da população, reduzindo as desigualdades sociais e territoriais por meio da identificação e reconhecimento das Regiões de Saúde. Segundo o Ministério da Saúde, os princípios que delineiam esta nova visão no processo de regionalização seriam basicamente os seguintes:

1. Territorialização - Consiste no reconhecimento e na apropriação, pelos gestores, dos espaços locais e das relações da população com os mesmos, expressos por meio dos dados demográficos e epidemiológicos, pelos equipamentos sociais existentes (tais como associações, igrejas, escolas, creches etc.), pelas dinâmicas das redes de transporte e de comunicação, pelos fluxos assistenciais seguidos pela população, pelos discursos das lideranças locais e por outros dados que se mostrem relevantes para a intervenção no processo saúde/doença – como o próprio contexto histórico e cultural da região;

2. Flexibilidade - Consiste em respeitar as diversidades regionais próprias a um país de grandes dimensões, como o Brasil, no processo de identificação das Regiões de Saúde;

3. Cooperação – É a ação conjunta realizada entre esferas de governo, entre gestores e entre as equipes técnicas no processo de implementação regional do SUS, por meio do partilhamento de experiências, do estabelecimento de ações de apoio ou na busca de soluções solidárias para as dificuldades enfrentadas em cada território;

4. Co-gestão – Consiste na efetivação, por meio do Colegiado de Gestão Regional (CGR) – de arranjos institucionais que propiciem um novo significado às relações entre os gestores da Saúde, permitindo que se desenvolvam, de forma solidária e cooperativa, as funções relativas a planejamento, programação, orçamento, coordenação, execução e avaliação das ações, das estratégias e dos serviços regionais;

5. Financiamento Solidário – Se refere à clara definição dos recursos financeiros destinados a apoiar os processos e iniciativas para priorizar os processos e investimentos que fortaleçam a regionalização, respeitando as estratégias nacionais e estaduais, assim como o Plano Diretor de Investimento (PDI) e o mapeamento atualizado da distribuição e oferta de serviços, nos espaços regionais. Desse modo, garante-se acesso amplo às ações e serviços de saúde, reduzindo as desigualdades de oferta existentes nas Regiões de Saúde;

6. Subsidiaridade - É um princípio que deve nortear as tomadas de decisão, pelo qual uma função não deve ser repassada à esfera subseqüente sempre que puder ser exercida pela esfera local. entre municípios, não deve ser repassado para outro o que pode ser realizado no município de origem. Isso pressupõe pactuação sobre quais sejam as esponsabilidades mínimas não-compartilhadas e as responsabilidades que devam ser objetos de ompartilhamento, entre as esferas de gestão;

7. Participação e Controle Social – Como princípio básico do SUS, deve ser respeitado e reproduzido ao nível das regiões de saúde criadas sob a égide do processo de regionalização.

Dados estes princípios, o processo de regionalização proposto nos Pactos prevê não só incorporar as propostas realizadas pelos Estados, através de suas instituições colegiadas, como também grande flexibilidade na organização de distintas regiões. São discutidos também temas de como configurar regiões e macro-regiões de saúde como áreas de extensão territorial contigua, as quais não devem ser entendidas como áreas de intervenção somente administrativa. Assim, três tipos de regiões de saúde se propõe ao longo desse processo: a) as intramunicipais, para aqueles municípios de grande extensão territorial ou grande densidade populacional; b) as intraestaduais, que abarcam mais de um município dentro de um mesmo Estado; c) as inter-estaduais, compostas por municípios contiguos entre dois ou mais Estados e; d) as fronteiriças, que em tese poderiam incorporar um ou mais países vizinhos.

As Regiões de Saúde seriam regidas por processos de planejamento regional, onde se estabeleceriam os seguintes instrumentos: a) O Plano Diretor da Regionalização (PDR), que conteria o desenho final do processo de pactuação com os gestores; b) O Plano Diretor de Investimentos (PDI) que expressaria os recursos de investimento tripartite para operacionalizar o PDR da Região considerada e; c) a Programação Pactuada Integrada (PPI) que definiria e quantificaria as ações de saúde para os residentes no territorio regional.

O Ministério da Saúde ainda define, em carater preliminar, uma lista das funções específicas de cada esfera de governo (União, Estados e Municípios) e enfatiza o papel dos Colegiados Regionais de Gestão, os quais O CGR deve ser composto por todos os gestores municipais de saúde dos municípios que integram a Região de Saúde e por representantes do(s) gestor(es) estadual(ais). Nas Regiões de Saúde de Fronteiras, o gestor federal também deverá compor o Colegiado.

Assim, os novos contornos do processo de regionalização procuram, mais do que fortalecer o papel dos municípios, dar continuidade a uma linha de gestão participativa que tem marcado o desenho das políticas públicas brasileiras nos últimos anos. Ainda que este processo esteja em construção, de forma lenta e gradual, ele tem gerado um maior protagonismo, tanto dos Estados como dos Municípios, na estrutura e definição dos processos de organização do SUS. Assim, nos últimos anos, os Estados tem aumentado fortemente seu papel da geração de soluções compartilhadas com os municípios para enfrentar processos concretos de regionalização. Este processo, ainda que seja assimétrico, vem progressivamente se construindo sob a liderança de alguns Estados da Federação, muitos deles utilizando as redes de saúde como processo de estruturação temática e regional no setor.

Na próxima postagem procuraremos abordar os novos conceitos de redes de saúde utilizados pelo Ministério da Saúde e a Importância do Projeto QUALISUS-Rede neste processo


Notas e Referências

(1) Teixeira, L; McDowell, M.C. & Bugarin, M. (2003), “Consórcios Intermunicipais de Saúde: Uma Análise à Luz da Teoria dos Jogos”, Revista Brasileira de Economia, Ed. FGV, 57(1) 253-281, Jan-Mar 2003, Rio de Janeiro (RJ)

(2) Ver Medici, A.C., (2002), “O Desafio da Descentralização: Financiamento Público da Saúde no Brasil”. Ed. Banco Interamericano da Saúde, Washington (DC),

(3) Ver: Ministerio da Saúde (2007), “Regionalização Solidária e Cooperativa: Orientações para a sua Implementação no SUS”, Série Pactos pela Saúde Vol. 3, Ed. Ministério da Saúde, Brasilia (DF), 2007. A atual gestão do Ministério da Saúde reconheceu o caráter inovador das NOAS, ao dizer que ela “representou um marco importante de instituição de uma lógica de estruturação de redes regionalizadas como um sistema de saúde integrado regionalmente, uma vez que trouxe elementos estratégicos de integração intermunicipal como a delimitação de referências territoriais para a elaboração de políticas, programas e sistemas organizacionais (módulos, microrregiões e regiões) e o estabelecimento de instrumentos de planejamento integrado como os Planos Diretores de Regionalização e de Investimentos. A NOAS propôs ainda mecanismos de promoção da racionalidade sistêmica como a análise de capacidade instalada, projeção de realocação otimizada de recursos e investimentos, processos de controle e regulação, etc. Todos esses elementos pretendiam o estabelecimento de bases de organização regional mais consistentes para o SUS estruturadas a partir da ampliação das prerrogativas de coordenação da esfera estadual”. Mas ao mesmo tempo, considerou inapropriada sua visão centrada nos Estados, ao dizer que “...alguns aspectos de sua formulação resultaram em insuficiências em sua capacidade de fundamentar processos consistentes de integração regional como o excessivo grau de normatização, a centralização na esfera estadual nos processos de planejamento e regulação, a ênfase na dimensão assistencial, a padronização dos recortes territoriais de organização dos serviços, a ausência na definição de um modelo de atenção, de sistemas de suporte logístico, entre outros”

(4) Idem, Ibidem

(5)Ministerio da Saude (2008), “Redes Regionalizadas de Atenção à Saúde: Contexto, Premissas, Diretrizes Gerais, Agenda Tripartite para a Discussão e Proposta de Metodologia para Apoio à Implementação”, Ed. Ministerio da Saúde, Secretaria de Assistência a Saúde, Departamento de Articulação de Redes de Saúde, Versão Para Debate, Brasilia (DF), Novembro de 2008.