segunda-feira, novembro 02, 2015

Acesso a Água e Saneamento x Desnutrição: Uma análise dos indicadores do Índice de Progresso Social para a América Latina

Ano 9, No. 68, Novembro 2015


André Cezar Medici
 
 
Introdução
Os problemas de acesso a água, seja por causa dos fatores climáticos ou pela degradação ambiental provocada pela ação do homem, seja por causa da má administração dos recursos hídricos, poderão ser determinantes na deterioração das condições sociais da população mundial mais vulnerável e no aumento da desnutrição. Primeiramente porque o acesso a água é determinante na produção agrícola e na disponibilidade de alimentos, especialmente para os pequenos produtores e lavouras de subsistência. Em segundo lugar, porque a falta de água, ou o acesso a água de má qualidade e a falta de saneamento básico, aumenta a incidência de enfermidades transmissíveis que podem causar diarréia e prejudicar os nives de nutrição infantil, estando associada a questões como o baixo peso ao nascer.  
É por este motivo que as preocupações com a sustentabilidade ambiental, com a eficiência no uso de recursos hidrícos e com os temas nutricionais e de saúde continuarão a ser relevantes no alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), de acordo com a agenda mundial definida no mês de outrubro de 2015. Ela leva a necessidade inexorável de revisão das agendas nacionais de como os recursos hídricos deverão ser gerenciados não só para a sustentabilidade ambiental (tais como decidir sobre os níveis adequados de  cobertura florestal), mas também como elemento fundamental para a redução da pobreza e melhoria das condições de saúde e nutrição, especialmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil.
O foco deste artigo é o impacto das condições de acesso à agua e saneamento na nutrição e saúde na América Latina e Caribe. Poucos estudos tem enfatizado o impacto das condições de saneamento nestes temas. Demonstrar algumas evidências sobre o assunto poderá aumentar a consciência e a mudar a gestão das políticas de acesso a água, saneamento e seus processos de gestão.
Dados Utilizados
Utilizaremos a base de dados acessada para o cálculo do Índice de Progresso Social – IPS (1) de 2015 (2). Este índice, que começou a ser calculado em 2014, mede de forma relativa o desempenho de diversos países considerando uma bateria de 52 indicadores ordenados segundo alguns princípios básicos: (a) são considerados somente indicadores sociais e ambientais, dado que não se quer medir o progresso social diretamente através de indicadores econômicos. (b) Os indicadores refletem resultados e não insumos ou indicadores intermediários. Nesse sentido, se o objetivo é medir saúde e bem estar, não se precisa saber quanto se gastou ou quanto se utilizou de recursos para alcançar os valores que estão refletidos no índice. (c) Os indicadores tem que ser holísticos e relevantes para todos os países, e não somente para países em desenvolvimento; (d) os indicadores tem que ser o reflexo da necessidade de ação – do governo ou da sociedade civil - para resolver os problemas levantados, focalizando em áreas que exigem imediata implementação de políticas.
Estes princípios básicos estão na base do conceito de Progresso Social que caracteriza o IPS, entendido como “a capacidade da sociedade em alcanlar as necessidades humanas básicas de seus cidadãos, estabelecendo os fundamentos que permitem a comunidade e aos cidadãos melhorar e sustentar a qualidade de vida, criando condições para que todos alcancem seu potencial pleno” (3).
O IPS, como índice relativo, varia de 0 a 100, onde 100 representa a posição do país em melhor situação no indicador considerado e 0 o país que se encontra em pior situação. O índice considera tres componentes: Necessidades Humanas Básicas, Fundamentos do Bem Estar e Oportunidades.  Cada um desses tres componentes é composto por quatro dimensões:
a)      No componente necessidades humanas básicas foram consideradas as dimensões nutrição e atenção médica básica, agua e saneamento, habitação e segurança pessoal.
b)      No componente fundamentos do bem estar, se incluem acesso ao conhecimento,  acesso a informação e comunicações, saúde e bem estar e sustentabilidade ambiental.
c)      No componente oportunidades, se incluem as dimensões direitos individuais, liberdade individual e de escolha, tolerância e inclusão social e acesso a educação avançada.
Neste conjunto de 12 dimensões se distribuem os 52 indicadores que compõe o IPS, como se pode observar na tabela 1 abaixo.



Tabela 1: Indice de Progresso Social: Componentes, Dimensões e Indicadores

Componentes

Dimensões

Indicadores

Necessidades Humanas Básicas

Nutrição e Atenção Médica Básica

Subnutrição; Profundidade do déficit alimentar; taxa de mortalidade materna; taxa de mortalidade infantil; mortes por doenças infecciosas.

Água e Saneamento

Acesso a água encanada; acesso a água nas comunidades rurais; acesso ao saneamento básico.

Habitação

Accesso a habitação; acesso a eletricidade; qualidade da eletricidade distribuida; mortes atribuidas a poluição no ambiente doméstico.

Segurança Pessoal

Taxas de homicídios; níveis de criminalidade violenta; nivel de percepção da criminalidade; terrorismo político; mortes por tráfico de drogas.

Fundamentos do Bem Estar

Acesso ao Conhecimento

Taxa de analfabetismo adulto; taxa de escolaridade na educação primária; taxa de escolaridade na educação secundária inferior; taxa de escolaridade na educação secundária superior; equidade de gênero na educação secundária superior.

Acesso a Informação e Comunicações

Taxa de assinatura de telefonia celular; taxa de usuários de internet; índice de liberdade de imprensa.

Saúde e Bem Estar

Esperança de vida ao nascer; taxa de mortes prematuras por doenças crônicas; taxa de obesidade; mortes atribuidas a poluição ambiental; taxas de suicídio.

Sustentabilidade Ambiental

Taxa de emissões para o efeito estufa; poluição das águas, biodiversidade e habitat.

Oportunidades

Direitos Individuais

Direitos políticos, liberdade de expressão; liberdade de associação; liberdade de movimento; direitos à propriedade privada.

Liberdade Individual e de Escolha

Liberdade de escolha; liberdade de religião, índice de casamentos prematuros; demanda satisfeita de contracepção; níveis de corrupção.

Tolerância e Inclusão Social

Níveis de tolerância aos imigrantes; níveis de tolerância aos homosexuais; discriminação e violência contra as minorias; níveis de tolerância religiosa; níveis de proteção social;

Acesso a Educação Avançada

Anos de educação terciária; níveis de escolaridade feminina; inequidade no acesso a educação; posicionamento global das universidades do país.
Foram considerados sempre os últimos dados internacionais disponíveis para cada um destes 52 indicadores. Em 2015, foi analisado o IPS, seus componentes e indicadores em 133 países (dos quais 21 latino-americanos) dividindo os países em seis categorias de progresso social: (i) países com muito alto progresso social (IPS acima de 86,4); (ii) países com progresso social alto (IPS entre 77,4 e 86,4); (iii) países com progresso social médio alto (IPSentre 67,1 e 77,4); (iv) países com progresso social médio baixo (IPS entre 55,3 e 67,1); (v) países com progresso social baixo (IPS entre 43,3 e 55,3) e (vi) países com progresso social muito baixo (IPS abaixo de 43,3). A tabela 2 abaixo mostra o IPS para os países da América Latina e Caribe e sua renda per-capita.
Tabela 2 - Índice de Progresso Social nos Páises da América Latina (IPS-2015)
País
Classificação do IPS (Ranking)
IPS
Renda Percapita em
US$ PPP
País
Classificação do IPS (ranking)
IPS
Renda Percapita em US$ PPP
Uruguay
Alto – 24º.
79,21
18,966.00
Paraguai
Médio Alto – 56º.
67,10
7,833.00
Chile
Alto – 26º.
78,29
21,714.00
El Salvador
Médio Baixo – 68º.
64,31
7.515.00
Costa Rica
Alto – 28º.
77,88
13,431.00
Venezuela
Médio Baixo – 72º.
63,45
17,615.00
Argentina
Médio Alto – 38º.
73,08
-
Bolivia
Médio Baixo – 73º.
63,36
5,934.00
Panamá
Médio Alto – 41º.
71,79
18,793.00
Rep. Dom.
Médio Baixo – 77º.
62,47
11,795.00
Brazil
Médio Alto – 42º.
70,89
14,555.00
Nicaragua
Médio Baixo – 78º.
62,20
4,494.00
Jamaica
Médio Alto – 44º.
69,83
8,607.00
Guatemala
Médio Baixo – 79º.
62,19
7,063.00
Colombia
Médio Alto – 49º.
68,85
12,025.00
Honduras
Médio Baixo – 82º.
61,44
4,445.00
Ecuador
Médio Alto – 51º.
68,25
10,541.00
Cuba
Médio Baixo – 84º.
60,83
18,796.00
México
Médio Alto – 54º.
67,50
16,291.00
Guiana
Médio Baixo – 87º.
60,42
6,336.00
Perú
Médio Alto – 55º.
67,23
11,396.00
 
 
 
 
De acordo com esta classificação nenhum país da América Latina e Caribe, com dados conhecidos, tem progresso social muito alto. Os países latino americanos tiveram os seguintes scores: a) progresso social alto (Uruguai, Chile e Costa Rica); (b) progresso social médio alto (Argentina, Panamá, Brasil, Jamaica, Colombia, Equador, México e Paraguai); (c) Progresso Social Médio Baixo (El Salvador, Venezuela, Bolivia, República Dominicana, Nicaragua, Guatemala, Honduras, Cuba, Guiana). Nenhum país da Região foi também classificado como tendo progresso social baixo ou muito baixo, o que caracteriza a Região como tendo progresso social médio ou ligeiramente alto.
 
Progressos nos níveis de desnutrição nos países da América Latina e Caribe
De acordo com as estatísticas da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação), as taxas de prevalência de desnutrição para a Região da América Latina e Caribe se reduziram de 15,3% (1990-92) para 6,1% (2012-2014) com efeitos na redução do número de desnutridos de 68,5 para 37,0 milhões de pessoas, no mesmo período respectivamente (4). Este progreso, no entanto, não foi homogêneo entre países e sub-regiões. Para exemplificar, por exemplo, nos países do Caribe, as taxas de prevalência de desnutrição, que já eram elevadas no início dos anos noventa, se reduziram pouco (de 27% para 20,1%), enquanto que na América Latina, a redução foi  bem mais significativa: de 14,4% para 5,1%, respectivamente.


Estes dados mostram que, ainda que tenha ocorrido uma redução expressiva e que as metas regionais associada s ao indicador para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio  (ODM) tenham sido alcançadas (ver gráfico correspondente), a desnutrição ainda é um problema que afeta a milhões de países na América Latina e Caribe e que, portanto, deveria continuar na agenda futura dos Objtivos de Desenvolvimento Sustentável na Região.

Correlações entre Nutrição e Atenção Médica Básica x Água e Saneamento

A tabela 3 mostra as correlações entre os indicadores de duas dimensões do IPS 2015  (Água e Saneamento e Nutrição e Atenção Médica Básica) para o conjunto de 24 países da América Latina e Caribe onde os indicadores estavam disponíveis. Os coeficientes de regressão foram classificados em células de tres cores, indicando variáveis de alta correlação ( verde, quando o coeficiente de regressão é superior a 0,85); de média correlação (amarelo, com coeficientes de regressão entre 0,7 e 0,85) e de baixa correlação (vermelho, quando os coeficientes de regressão são inferiores a 0,7).

Tabela 3: Coeficientes de Regressão do Cruzamento de Duas Dimenões do IPS-2015 (Nutrição e Atenção Médica x Água e Saneamento) para 24 países da América Latina e Caribe
 


INDICADORES SEGUNDO DIMENSÕES

Acesso a Água Encanada

Aceso Rural a Água Tratada

Acesso a Saneamento Básico

ÁGUA E SANEAMENTO

Desnutrição

0,8493

0,7044

0,8793

0,9261

Profundidade do Déficit Alimentar

0,9038

0,6696

0,8403

0,9226

Taxa de Mortalidade Materna

0,6562

0,4138

0,6306

0,6499

Taxa de Mortalidade Infantil

0,7189

0,4708

0,7305

0,7349

Mortes por Doenças Transmissíveis

0,6275

0,3958

0,695

0,6485

NUTRIÇÃO E ATENÇÃO MÉDICA

0,8616

0,5342

0,8535

0,8954
Fonte: Porter, M., Stern, S & Green (2015), M, Social Progress Index 2015, Ed. Social Progress Imperative, Washington DC, March 2015.

Os dados mostram que, ao nível agregado, existe uma forte correlação entre as duas dimensões consideradas (nutrição e atenção médica x água e saneamento), o que leva a deduzir que a melhoria das condições de abastecimento de água e saneamento básico poderá melhorar as condições de saúde e nutrição na Região.
No entanto, se verifica, ao correlacionar os indicadores individuais que compõe estas dimensões, que as maores correlações se encontram associadas a dimensão água e saneamento e aos indicadores de desnutrição e profundidade do déficit alimentar.  Destaca-se também que pode existir um efeito aditivo quando se consideram os três indicadores da dimensão água e saneamento nos indicadores de desnutrição e déficit alimentar.

Vejamos, por exemplo, a relação entre a dimensão agregada água e saneamento do IPS e o indicador de desnutrição, como pode ser visto no gráfico que se segue. Se verifica um coeficiente de regressão de 0,93. O gráfico também posiciona alguns países para mostrar as diferenças existentes em relação a distintos contextos.


Considerações Finais



No mês de março de 2016 ocorrerá em Lima a IV Conferencia Latino-Americana de Saneamento. Será um momento privilegiado para discutir como se poderá melhorar a cobertura do saneamento na Região e também os efeitos sobre a nutrição, saúde e outros indicadores sociais que poderão melhorar com o estabelecimento de políticas que permitam melhorar o acesso ao saneamento básico e a água de boa qualidade na Região.
Em meados da presente década, a Organização Pan Americana da Saúde mencionava que  a falta de água potável e de saneamento constituia a segunda causa indireta de morbi-mortalidade para as crianças com menos de 5 anos de idade na Região Latino-Americana, sendo o maior componente de carga de enfermidade associada ao ambiente (5). Mas a maior ironia associada a este processo, residia no fato de que cerca de 31% dos recursos hídricos do mundo concentram-se na Região, sendo a ALC a região mundial com maior disponibilidade de água doce per-capita do mundo. No entanto, a irregularidade, a má gestão e a falta de uma cultura de preservação dos recursos hídricos fazem com que os serviços não cheguem a quem precisa, aumentando os riscos associados a saúde e a desnutrição. A situação se torna ainda mais drástica com os problemas que se associam à mudança climática que tem castigado fortemente a Região nos últimos anos.
 
Notas
(1)   O Índice de Progresso Social (Social Progress Index - SPI) é uma iniciativa da Social Progress Imperative, uma organização não governamental americana, sem fins de lucro, coordenada por Brizio Biondi-Morra, administrador e empresário com vasta experiência em temas de estratégia e gestão de negócios em empresas internacionais na América Latina. O índice foi desenvolvido por um grupo sob a liderança intelectual dos professores Michael Porter e Scott Stern, mas contou com a participação de mais de uma centena de especialistas e instituições diferenciadas, incluindo os premios nóbel em economia Amartya Sen e Joseph Stiglitz. O esforço global no desenvolvimento do SPI foi financeiramente apoiado por instituições e empresas como Avina, Cisco, Deloitte, Rockfeller Foundation, Skoll Foundation, além de várias empresas e governos de países diversos, especialmente da América Latina. A metodologia e a descrição do SPI poderá ser encontrada na página http://www.socialprogressimperative.org/data/spi
 
(2)   Porter, M., Stern, S & Green (2015), M, Social Progress Index 2015, Ed. Social Progress Imperative, Washington DC, March 2015.
(3)   “Social Progress is the capacity of a society to meet the basic human needs of its citizens, establish the building blocks that allow citizens and communities to enhance and sustain the quality of their lives, and create the conditions for all individuals to reach their full potential.”, in Porter, Stern and Green (2015), Social Progress Index 2015, p 14.
(4)   Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), The State of Food Insecurity in the World 2014, Rome, 2014. Link http://www.fao.org/3/a-i4030e.pdf
(5)   Organización Panamericana de la Salud, Agua y Saneamiento: En Búsqueda de Nuevos Paradigmas para las Américas, Ed. OPS, 2012, Washington DC.
 
 
 




 





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